“Embora nada possa trazer de volta a hora
Do esplendor na relva, da glória na flor
Nós não vamos lamentar, preferimos encontrar
Forças no que ficou para trás”
William Wordsworth, “Ode: Intimations of Immortality From Recollections of Early Childhood”
O trecho acima ilustra bem o ideário de nostalgia acerca da juventude. Todos gostariam de ter de volta as emoções do primeiro amor, do despertar do corpo e da sexualidade, o entregar à vida que escorre sem pressa e compromissos, a urgência pelo mundo. Já foi dito até que é um desperdício que a juventude seja dada aos jovens, que não sabem aproveitá-la. Decerto, isso confere mais poesia à juventude. Mas, e quando o fluxo natural é interrompido, sufocado, vilipendiado?
“O Despertar da Primavera”, de Duncan Sheik e Steven Sater, versão musical da obra de Frank Wedekind, vencedora de oito Tonys em 2006 na Broadway e que estréia versão brasileira dirigida por Charles Möeller e Claudio Botelho, canta os desdobramentos da juventude violada. E canta em alto e bom som, com afinação precisa, mostrando que musicais não são meros espetáculos escapistas, que podem sim tratar de temas densos e que muito mudou desde a época de “Escola de Sereias”.
Recentemente, o filme “The White Ribbon”, de Michael Haneke, propõe uma visão de como a dureza e rigor na criação de crianças alemãs teria sido preponderante para o desenvolvimento do nazismo. Num simples paralelo, se pensarmos que o texto de Wedekind é de 1891, mais assombrosa é sua ousadia e atualidade.
A adaptação para o formato musical poderia ter comprometido a qualidade e intensidade dos diálogos. Mas o talento de Sheik e Sater/ Möeller e Botelho dribla isso com maestria, com canções pungentes e que cantam a narrativa e atingem o espectador como muitos textos não conseguem.
A montagem é de altíssimo nível, como não poderia deixar de ser em se tratando da dupla de diretores. A cenografia de Rogério Falcão é muito inteligente e bem resolvida, usando estruturas de ferro que, além de permitir o fácil deslocamento do elenco no palco, sugere aprisionamento, retenção, como se os jovens fossem “pássaros presos na gaiola” no universo hipócrita e castrador em que vivem. A iluminação de Paulo César Medeiros é excelente e em alguns momentos chega a ser sublime, traduzindo com sensibilidade a alternância entre o universo de luzes e sombras que os jovens vivem em seu interior. Os figurinos de Marcelo Pies, o som de Marcelo Claret, a coreografia de Alonso Barros, a preparação vocal de Ester Elias, a coordenação artística de Tina Salles e a direção musical de Marcelo Castro formam o conjunto que torna este espetáculo tão forte e único.
A direção de Charles Möeller e a supervisão musical de Cláudio Botelho são excepcionais e atestam o merecimento da posição única que ocupam no panorama artístico brasileiro. O trabalho dessa dupla é de nível internacional, seu altíssimo padrão de qualidade é visível em cada cena do espetáculo e como dito por Möeller, seu trabalho vai muito além de mera cópia do original.
O elenco é fantástico e isso é surpreendente se considerarmos que é formado por atores novatos, com pouca experiência. Quem pensar que trata-se de um cast bonitinho mas nulo, vai se surpreender e muito com a força do grupo em ação. Todos estão ótimos, não há nenhum elemento destoante. Provavelmente esse êxito vem da noção de conjunto, de grupo, que percebe-se na encenação. Por exemplo, os veteranos Débora Olivieri e Carlos Gregório, que se alternam nos vários papéis adultos, trocam de igual para igual com os novatos. Olivieri está impagável como a professora de piano fazendo ótimo duo com André Loddi e tem seu melhor momento como a mãe de Melchior sendo confidente de Moritz. Gregório tem grande momento na silenciosa cena do funeral do filho. Naturalmente, entre os jovens, embora o nível seja ótimo, há diversidade, seja por características próprias ou pelo peso dos personagens. Alice Motta, Danilo Timm, Davi Guilhermme, Eline Porto, Estrela Blanco, Julia Bernat, Lua Blanco, Mariah Viamonte, Pedro Sol, Thiago Marinho oferecem belo trabalho. Bruno Sigrist tem voz muito agradável e Laura Lobo arrasa em seu solo como a menina vítima de abuso. Dois exemplos de atores com forte presença em cena que mereciam mais destaque. Assim como André Loddi, que com seu Georg é carisma puro e tem ótimo timming para a comédia, além de ser a melhor voz masculina do elenco. Felipe de Carolis está na limite do caricato, mas o fato de seu personagem ter treze anos de idade redimensiona o fato e sua performance. Informação que podia estar presente no texto, para situar o espectador. Thiago Amaral tem olhar que traga o espectador, é intenso. Seu Hanschen é um belo contraponto ao grupo de estudantes, pois não confronta e nem sucumbe, mas tira proveito das circunstâncias com o que possui. O outro contraponto é a Ilse de Letícia Colin, que se rebela em um exílio libertário. Colin está em estado de graça, esbanja carisma, sensualidade e vida e impõe sua presença de tal forma que só podemos lamentar que não esteja em cena o tempo todo. Pierre Baitelli compõe seu Melchior com vigor e energia e traduz bem toda a estupefação de sentir na própria pele o quanto o mundo pode ser sórdido. Malu Rodrigues como Wendla é simplesmente apaixonante. A caçula do elenco leva com maestria o peso de protagonista. As reviravoltas de sua frágil e ingênua personagem não devem ter sido fáceis, mas Rodrigues se desincumbe de cada uma com leveza e graça. Além de segura como atriz, Malu tem uma voz belíssima, o que só realça mais sua luminosidade. Apaixonante. Simples assim.
E temos Rodrigo Pandolfo e seu Moritz. Num espetáculo superlativo, de muitos elementos superlativos, Pandolfo é seu brilho maior. Sua performance é extraordinária, arrasadora, daquelas que definem horizontes. Sua composição é meticulosa, brilhante, crível e comovente: o tom de voz, o ar de desvario sufocado, o olhar perdido, a expressão corporal meio robótica, os pés contraídos para dentro, detalhes mínimos que fazem-se imprescindíveis para um ator do primeiro time. É um prazer e um presente vê-lo em cena, um ator que dignifica o sagrado ofício da interpretação. Tudo o que podemos esperar é que Pandolfo saiba dirigir muito bem sua carreira, pois um ator desse nível não surge toda hora. Bravo! Bravo! Bravo!
“O Despertar da Primavera” é um espetáculo de primeiríssimo nível, que entretém, emociona e faz refletir. Uma montagem para entrar para a História.
O DESPERTAR DA PRIMAVERA
Música de Ducan Sheik
Texto e Letras de Steven Sater
Baseado na obra de Frank Wedekind
DIREÇÃO
Charles Möeller
VERSÃO BRASILEIRA / SUPERVISÃO MUSICAL
Claudio Botelho
DIREÇÃO MUSICAL
Marcelo Castro
COREOGRAFIA
Alonso Barros
CENÁRIO
Rogério Falcão
FIGURINOS
Marcelo Pies
VISAGISMO
Beto Carramanhos
DESIGN DE LUZ
Paulo César Medeiros
DESIGN DE SOM
Marcelo Claret
COORDENAÇÃO ARTÍSTICA
Tina Salles
ELENCO
Malu Rodrigues
Letícia Colin
Pierre Baitelli
Rodrigo Pandolfo
Thiago Amaral
apresentando
Débora Olivieri e Carlos Gregório
com:
Alice Motta
André Loddi
Bruno Sigrist
Danilo Timm
Davi Guilhermme
Eline Porto
Estrela Blanco
Felipe de Carolis
Julia Bernat
Laura Lobo
Lua Blanco
Mariah Viamonte
Pedro Sol
Thiago Marinho
PRODUTOR EXECUTIVO
Luiz Calainho
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
Aniela Jordan
Beatriz Secchin Braga
Monica Athayde Lopes
UM ESPETÁCULO DE
Charles Möeller & Claudio Botelho