quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Identidade Sonora


Estrondos, pancadas, berros... Propagam-se pelo ar sons familiares e desconhecidos, como fragmentos de uma voz surda que ainda ousa se fazer perceber. Debate-se, espalha-se, impõe-se convulsamente para continuar a existir; se, por qualquer motivo circunstancial e menor, todos em volta ignorassem sua presença, seus registros não permitiriam isso.

Quando criança, em seu habitat natural, os sons eram mansos e audíveis, corriam sem pressa... Cada um, seu pai, sua mãe, seus três irmãos e cinco irmãs, até sua vó e o Tonho tinham seus sons próprios. O jeito de cada um arrastar o pé, chamar a vaca na hora de ordenhar, contar as estrelas no céu, tudo isso era a marca de cada um. Olhavam as estrelas e parece que ouviam elas entoarem uma canção de ninar. Era como se a paz nunca tivesse deixado de existir.

Ao chegar na cidade grande, logo percebeu a diferença. Estava fascinada... era tudo tão pleno de movimento, luz e velocidade. Estava no mundo de verdade, de gente importante, de gente que importava. Mas, em pouco tempo começou a ficar confusa. Gritos, buzinas, apitos, britadeiras, rádios, alto-falantes, latidos, freadas, sirenes, ambulantes, gargalhadas e urros a deixaram tonta... e sentiu sua cabeça girar... girar... e sentiu um barulho que já sentira antes, só que dessa vez muito mais forte... e viu que esse barulho vinha de dentro dela mesma, de sua barriga vazia.

Vertigem! Solidão! Pavor! E assim permaneceu...
cansada faminta tonta perdida imunda exausta desgarrada fedida pequena suada rota jogada errante febril amassada muda....................................NÃO................_____------_____--------
-------..................NÃO____________--------.....................NÃO--------------__________........

E reconheceu para si mesma que não era nada mesmo nessa vida. E imaginou para si mesma que não fazia nenhuma diferença para onde fosse ou deixasse de ir. E disse para si mesma que era apenas mais uma. E pensou para si mesma que não faria diferença mesmo...

Então, lembrou de sua vida de menina de dezenove anos pela última vez. E de todos os sons que guardou em sua memória desde então. De quando veio do sertão, num caminhão de laranja, noites estrada afora, ouvindo o sopro do vento quente e empoeirado que quase a sufocava. Das garotas que viu no mato ralo da beira da estrada com os caminhoneiros, berrando de modo tão estranho que nem sabia se de prazer ou horror. Do barulho da enxada que batia na terra seca e estéril da sua terra. Do som da chuva que quase nunca vinha, mas quando decidia aparecer levava dias para ir embora, e alagava abundantemente o que não conhecia abundância. Do cantar do galo que a acordava assim que o sol nascia. E pela última vez lembrou da voz da mãe, agreste e rascante, chamando para o café e dizendo que a labuta já esperava quem ia labutar.

E subiu o mais alto que pode. Tão alto que teve a impressão que ouviu algo, além das nuvens, rasgar o céu.

A metrópole apressada e ardente, absorta em seus dilemas que alternam-se com a rapidez de um raio, só ouviu um breve impacto, seco e abafado, estalar no concreto cinza de onde nada brota, quiçá ilusões, angústias e a massa humana disforme que vertia sangue silencioso e ralo.

Um som surdo. Sem eco. Sem ampliação.

4 comentários:

  1. Puxa!
    Imaginei agora o "Lirinha" (Cordel do Fogo Encantado) narrando esse texto! Pois ao mesmo tempo em que é leve e sensível, tbém é forte e impactante! Ao mesmo tempo em que é retógrodo, é atual, contemporâneo!

    O que faz lembrar que, quanto mais a metrópole... “cresce pra cima”, nós “humanos”, crescemos “pra baixo”, somos reprimidos e comprimidos por nós mesmos.
    No passado, na infância, noutros tempos, pra alguns ou pra muitos, existia mais natureza, mais naturalidade, mais sentimento talvez...
    Lembra da frase: “Será a vida uma grande contradição?”....
    ...pois parece que, quanto mais o “mundo cresce”, quanto mais se fala em avanço, mais retrocedemos, mais “desaprendemos”. Talvez sim, talvez um pouco...quem sabe...?

    Olhamos pros lados e enxergamos, escutamos, sentimos, todo esse “alvoroço” nos cercando.... e tudo isso nos faz sentir pequenos.... grande engano.... somos maiores...
    ...mas o erro é querer ser um “grande prédio”...pois o mesmo só possui tamanho, não possui alma...
    Não podemos deixar os gritos do concreto nos calar...
    ...mas tbém,não conseguiremos calar o concreto com gritos....

    Enfim, sons, ecos, impactos, vazio, concreto.....vidas...lembranças...história!
    ....vc mais uma vez soube descrever, com perfeição, a história da vida!

    Fabinho... muito bom, muito bom, muito bom!
    Cada vez que leio esse texto, tenho novas percepções, entendimentos, visões, sobre o mesmo!!!
    “estalar no concreto cinza de onde nada brota” ...GENIAL!
    Parabéns!
    Um grande abraço!

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  2. Belíssimo texto. Com certeza é seu texto mais belo. A última vez que senti o que senti o lendo foi quando assisti lost in translation.

    Eu tenho duas visões sobre o texto.

    1) O século vinte e um, a vida movimentada, o workaholismo, as pessoas que não conseguem olhar para quem passa ao seu lado na rua por temer o contato... A competição, a infestação e a infelicidade. - Isso tudo matou nossa voz. Nosso som. Nossa identidade.

    2) O passado. O que nos tormamos está tão longe da felicidade mesmo tendo feito tanto para ser feliz. Olhamos para trás e enxergamos uma luz. Mas caminhamos sempre para frente, com medo da escuridão e da morte daquilo que nos resta. se ainda nos resta alguma coisa.

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  3. Perdi o outro post... :(

    Parabéns pelo texto!

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  4. Nossa...
    Acho que já comentei com vc antes oq achava de seu blog, mas nunca havia parado para comentar aqui propriamente dito.
    Suas palavras são deliciosas de ler, de se perder, de se encantar e encontrar.
    Poucas pessoas conseguem prender minha atenção em um blog. Vc consegue!
    Vida longa para Fabinho e suas Digressões Difusas!

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